quinta-feira, 11 de agosto de 2011

As muitas vidas de Roman Polanski

por Luciano Trigo para o G1

CapaO título do livro de Christopher Sandford é Polanski – Uma vida, mas a trajetória do seu personagem é tão múltipla, atribulada, trágica e cheia de reviravoltas que mal parece caber numa única existência – ou numa única biografia. Bastaria citar três episódios que sozinhos bastariam para preencher ou definir toda uma vida: a experiência do Holocausto na Polônia, na infância, tendo perdido a mãe num campo de concentração; o assassinato bárbaro de sua segunda mulher, Sharon Tate, grávida de quase nove meses, numa carnificina promovida por membros da seita do lunático Charles Manson, em 1969; e o escândalo provocado pelo suposto estupro de uma menina de 13 anos, oito anos depois, seguido da condenação pela Justiça americana e da fuga vergonhosa do país.
Parece difícil acreditar que alguém consiga não apenas passar incólume por tantos traumas como também  encontrar energia e inspiração para produzir uma obra cinematográfica internacionalmente reconhecida, que já chega a 18 longas-metragens (desde a estreia, com Faca na Água, em 1962, ainda na Polônia comunista, até O escritor fantasma, em 2010, passando por clássicos como O bebê de Rosemary, A dança dos vampiros e Chinatown). Essa carreira aparentemente ainda não chegou ao fim: Polanski já está envolvido na pre-produção de Carnage, baseado na peça de Yasmina Reza que no Brasil recebeu o título de O Deus da carnificina.
Arrogante e vesso às convenções sociais, promíscuo notório com uma queda incontrolável por lolitas, artista cínico e indiferente à opinião pública, o cineasta polonês – que completa 78 anos no próximo dia 18 – parece ser amado e odiado na mesma medida e tem plena consciência disso.
Em suas memórias, Roman, publicadas em 1984, definiu a si mesmo como um “gnomo devasso e maligno”, e não estava exagerando. Detalhista, com base em mais de 270 entrevistas e numa pesquisa exaustiva, Sandford corrige diversas informações contidas naquele livro e contesta outras, construindo em sua biografia (não-autorizada porém honesta) o retrato de um homem ambíguo, um fugitivo marcado por diferentes exílios e perdas, mas também um artista perfeccionista ao extremo, para quem o cinema é mais importante que a vida real.
Roman Polanski e Sharon TateFalta, talvez, profundidade na interpretação da personalidade e das motivações de Polanski, mas de certa forma isso é bom: o autor não cede à tentação de justificar a vida pela obra, nem embarca em elucubrações teóricas sobre os sentidos ocultos dos seus filmes. Sandford não tem a pretensão de explicar Polanski, mas tão somente mostrá-lo, para que o leitor faça o seu próprio julgamento.
Não se espere, tampouco, uma análise crítica de sua obra, embora o livro seja rico em histórias sobre os bastidores de cada produção, sobre os projetos não realizados (incluindo um filme sobre golfinhos assassinos que planejam matar o presidente dos Estados Unidos)  e sobre a relação de Polanski com outros cineastas de sua geração – destacando-se aqui a antipatia por Jean-Luc Godard em particular e pela Nouvelle Vague em geral, que o assustavam “por seu amadorismo e por sua técnica pavorosa”. No Festival de Cannes, em 1968, quando os cineastas franceses se mobilizavam em torno de propostas de esquerda, ele declarou: “Truffaut e Godard são como garotos brincando de fingir de revolucionários. Passei dessa fase. Fui criado num país em que essas coisas aconteciam para valer.”
O desafio que o autor se propõe, portanto, é desenrolar, de forma tão precisa e objetiva quanto possível,  o novelo confuso, tortuoso e por vezes bizarro em que se transformou desde muito cedo a vida de Polanski. Naturalmente, as minuciosas reconstituições dos dois episódios mais traumáticos da vida do cineasta ocupam boa parte do livro: o assassinato de Sharon Tate e o processo por estupro da menor Samantha Gailey. (Aos percalços vividos na infância, também mapeados com rigor, o próprio Polanski se recusou a atribuir qualquer importância: “As crianças aceitam a vida como ela é. As dificuldades por que passei me pareciam normais.”)
Roman e SharonSharon era a mulher perfeita para Polanski: linda, famosa e bem-sucedida como atriz, apaixonada, tolerante às traições do marido. O acordo era: “Roman mente para mim, e eu finjo que acredito”.  Em 1969, o diretor colhia os louros do sucesso de O bebê de Rosemary, um enorme êxito de bilheteria – mas também  um filme perturbador, envolvendo satanismo, o que despertou reações violentas e cartas ameaçadoras (“Vou decapitá-lo e depois mijar no seu crânio”, dizia uma delas).
Enquanto isso, um marginal chamado  Charles Manson reunia dezenas de jovens desmiolados em torno de ideias malucas e muitas drogas, criando uma espécie de seita cujo lema, “Helter Skelter”, era tirado de uma canção dos Beatles. Sandford é convincente ao desvincular o assassinato de Sharon Tate do filme O bebê de Rosemary - tese bastante difundida na época, atribuindo-se ao casal a prática de bruxaria. Outra versão descartada é a de que o crime foi resultado de uma “festinha devassa” regada a LSD que tinha descambado para a violência. Embora Polanski fosse de fato chegado a drogas e sexo não ortodoxo, ele não teve nenhuma culpa no episódio. A chacina, aliás, é descrita com detalhes escabrosos, que mostram a que ponto pode chegar a patologia social norte-americana, numa das páginas mais negras da cultura americana.
Samantha GaileyApesar de alguns atenuantes, é difícil conservar a mesma simpatia por Polanski no caso de Samantha Gailey, menina de 13 anos a quem ele ofereceu bebida e sedativos e em seguida violentou, na casa de Jack Nicholson, após uma sessão de fotografias. O mais chocante é constatar que deitar com meninas dessa idade parecia algo rotineiro para o cineasta, na época com 43 anos. Sandford transcreve trechos do depoimento da menina à Justiça que deixam Polanski muito mal na foto. A reação da mídia foi de revolta: um jornal de Los Angeles chegou a sugerir que o cineasta fosse “quimicamente castrado”.
Polanski chegou a passar 42 dias na prisão, acreditando estar cumprindo sua parte num acordo com o juiz designado para o caso. Mas o acordo só existia na sua imaginação.  Embora tenha afirmado gostar da experiência do encarceramento, ele não hesitou em fugir para a Europa quando  se deu conta de que poderia ficar preso por muito mais tempo do que pensava – a pena, somados os diversos delitos envolvidos (uso de drogas, sexo não-consentido com menor, sodomia etc) podia chegar a 50 anos.
O fato é que Polanski sobreviveu a mais esse golpe e continuou a fazer seus filmes. Em 2002 ganhou o Oscar por O pianista. Está casado desde 1989 com a bela atriz Emanuelle Seigner, que estrelou seus filmes Busca frenética e Lua de fel. Preso em Zurique no ano passado, conseguiu escapar da extradição para os Estados Unidos graças a uma boa fiança e à pressão de diversos intelectuais e cineastas que se mobilizaram em sua defesa.
Christopher Sandford é um biógrafo profissional, que já escreveu livros sobre Mick Jagger, Erc Claptone Kurt Cobain, entre outros. Em Polanski – Uma vida, ele reúne um volume de informações impressionante sobre seu biografado, muito bem articuladas por uma prosa ágil e envolvente. Fica-se sabendo tudo sobre a vida do cineasta, e no entanto algo escapou: o enigma Polanski permanece indecifrado. O eterno fugitivo, mais uma vez, não se deixou capturar – mas esta talvez fosse uma tarefa impossível.
Polanski – Uma vida, de Christopher Sandford. Nova Fronteira, 488 pgs. R$59

FILMOGRAFIA DE ROMAN POLANSKI
- A faca na água (1962)
faca
- Repulsa ao sexo (1965)
sexo
- Armadilha do destino (1966)
armadilha
- A dança dos vampiros (1967)
dança
- O bebê de Rosemary (1968)
bebê
- Macbeth (1971)
macbeth
- Quê? (1973)
que
- Chinatown (1974)
Chinatown
- O inquilino (1976)
inquilino
- Tess (1979)
Tess
- Piratas (1986)
Piratas
- Busca frenética (1988)
Frantic
- Lua de fel (1992)
Lua de fel
- A morte e a donzela (1994)
Morte
- O último portal (1999)
Portal
- O pianista (2002)
Pianista
- Oliver Twist (2005)
Oliver
- O escritor fantasma (2010)
Fantasma

Um comentário: